Wednesday, August 08, 2007

Um caso à parte

No momento que entrei na sala senti todos os olhos sobre mim. O faxineiro acabara de limpar, levando dali pegadas de lama, perfumes baratos e histórias contadas. A lâmpada do abajur mal-colocado no canto da sala piscava vigorosamente, tornando macabras as expressões de tédio dos que estavam perto.
Notei que esperavam alguém, ou algo de alguém que soubesse por que os tinham convocado. Diante de tamanho burburinho provocado pela minha chegada reprimi-me por estar mais uma vez atrasada. O que fazer agora? Era esperado que fizesse um discurso? Apavorada disse um constrangido “olá” e escondi-me no fundo da sala, certificando-os que não era eu a culpada da repentina quebra de suas rotinas. Eu dizia-lhes sem pronunciar “estou do seu lado, sou mais uma para reforçar-lhes a confusão.” Apenas um homem continuava virado em minha direção, este revirou os olhos e deu um disfarçado grunhido de insatisfação. Detestei aquele homem.

Um segundo depois (ou o que me pareceram cinco minutos), este mesmo homem se levanta e, com ares de humorista, convoca sua equipe para dizer-lhes suas atividades. Duas semanas teríamos de conviver e tentar desenvolver nosso projeto mais complexo: teríamos de nos conhecer.
Imediatamente saímos para tomar uma cerveja – todos nós concordamos que as melhores histórias transbordam em uma mesa de bar. Logo após a rodada de apresentação, falávamos de frutas. Prevendo que o assunto não acabaria tão cedo, tomei as rédeas da apresentação e me retirei. Acredito que eles tenham concluído que eu era uma pessoa que apreciava um bom sono, ou pensaram que não gostava de discutir frutas. Era um bom começo.

No decorrer das duas semanas ficamos muito próximos, aprendemos a dividir confidências, discorrer sobre presente, passado e futuro. No entanto, o que mais me intrigava era o homem que uma vez dissertara sobre a importância das atividades que iríamos exercer. “Conhecer quem nos ronda é essencial para quem conheçamos a nós mesmos”, ele nos disse. Era uma pessoa brilhante, de um sarcasmo lírico, comunicativa em um modo quase cômico. Perguntava-nos sempre como estávamos, criticava e discorria sobre nossos repetidos assuntos, mas sempre.. sempre desviava o olhar. Aquele homem não queria ser descoberto. Meu objetivo tinha mudado.
A partir do momento em que fui capaz de capturar um olhar fugitivo, alterei as coordenadas de meu destino e dediquei-me a descobrir algum dos muitos porquês desse alguém que insiste em seu mistério. Ele tinha a maior cápsula protetora que já conheci. Um alguém com uma docilidade extrema, a quilômetros de distância.

Talvez para evitar que as reais perguntas sejam feitas, contou-me muito das coisas que não lhe importavam. Críticas duras a assuntos maleáveis, ele deixava-se envolver simplesmente para no último minuto recuar. Por vezes, consegui capturar um fragmento de olhar interessado, ou mesmo um suspiro nervoso. Ele fora traído pelo que não dizia, uma contradição ambulante entre meios verbais e não verbais. Este homem insinuava ser impossível agradar, justamente para fazer-nos desistir da tentativa.

Era um líder do mundo subjetivo. Tão certo de seus princípios que abdicou dos sonhos inocentes e estabeleceu a ditadura sobre si. Construiu á sua volta uma muralha quase perfeita e, como eu, teve de lutar com a dualidade entre o não querer ser compreendido e a vontade de ser descoberto.

Falhei como sabia que iria. O que descobri sobre este homem foi uma ínfima parte diante de quem tem tanto a oferecer. Mas como ele mesmo nos disse, conheci um pouco mais de mim. Pulsava em mim um interesse vivo sobre os outros. Vivacidade esta que senti apenas em meus 7 anos de idade, quando ganhei meu primeiro livro.

Ainda era madrugada quando despertei. Ainda assim, sentia ter dormido por horas, anos. É curioso como tendemos a arregalar os olhos na falta da luz e, no entanto, viver de olhos fechados. Este homem que nunca conheci transformou-se em tudo o que esperava. Ele era um cavaleiro mítico de armadura reluzente, um príncipe de sorriso doce e palavras furtivas. Um ser à parte: errante, fascinante.

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